Noites e Quintais Enluarados

(Conto de Assis Coelho para lembrar Galos noites e quintais de Belchior)

Olhou-se no espelho e viu o olhar lacrimoso que trazia ultimamente. Fonte de crescentes preocupações e perplexidade diária. Há pouco tempo, não imaginaria que seu corpo, sobretudo seu rosto, não poderia tão cruelmente mostrar os sinais da passagem do tempo.




Jamais imaginou que aquele rosto se tornasse uma superfície propícia para pequenas crateras e pequenas elevações disformes pontilhadas por manchas que relutavam desaparecer com o uso constante de cremes. Antes era alegre como um bando de pardais sobrevoando mangueirais e canaviais que nunca saiam de suas lembranças, talvez pelo fato de ter permanecido por muito tempo sob a varanda da casa de seu avô, olhando embevecido para aquelas ondas verdes que se metamorfoseavam de acordo com a direção do vento.

Essas lembranças lhe ocorriam em sonhos, ou quando se deitava na varanda daquele pequeno apartamento de frente para um parque arborizado que o fazia lembrar, invariavelmente, das belezas de sua terra natal. Tudo agora compunha um quadro opaco que ainda insistia em ficar na parede da memória um pouco obscurecida, devido ao medo da violência e do mal que ela sempre trás. E aqueles riachos secos e crateras lunares imprimidos indelevelmente em se rosto eram as marcas impiedosas da inexorável tessitura do tempo.
Talvez sonhara muito sobre o bagaço de cana do engenho e, na ingenuidade da juventude, criou mundo utópicos, fortalecidos por poemas e letras de músicas românticas ouvidas no alto-falante de sua cidadezinha que, invariavelmente tocava sambas-canções de Nelson Gonçalves, Orlando Silva e lamentos de Valdick Soriano José Augusto, e depois muitas canções da turma da Jovem Guarda. O repertório variava de acordo com o humor do locutor e os pedidos dos namorados em infindáveis voltas pela pracinha da cidade.

Aquele rosto refletido não era o mesmo poço narcísico de outrora que não percebia a impermanência das coisas que se manifestava agora em suas mãos, braços e pernas e cada vez mais intensamente no olhar opaco e frio refletido naquele espelho que a tudo testemunhava friamente.

À noite, essas lembranças afloravam com mais intensidades. Relembrando galos andando garbosamente pelos quintais, onde também eram
criados carneiros que carregavam em seus pescoços, pequenos chocalhos, que juntos compunham uma sinfonia noturna que o induzia ao
sono facilmente, tão diferente do sono recheado de pesadelos e sobressaltos que preenchem suas noites insones de agora.
Ao fechar os olhos, naquela pequena varanda, ressentia o cheiro de carneiros pastando solenemente sob o céu estrelado do sertão,
com o cheiro dos currais e o das plantas orvalhadas contornadas pelas serras que a neblina encobre nas manhãs. Certamente, não há
luares e coisas como aquelas que insistem em povoar sua memória e eram tão comuns quando havia galos noites e quintais.

O Autor:

Assis Coelho nasceu no dia 3 de Outubro de 1950 na cidade de Viçosa do Ceará. Mas mora em Brasília onde estudou na Universidade de Brasília – UnB – e onde trabalha na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.

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