EX-FODÃO

Não era só uma questão de rima para tonhão, meu verdadeiro nome. Desde menino fui chamado assim. Hoje sou este resto de homem, quase se desmanchando ao andar. Quem imaginaria um cara como eu, atacante dos melhores que surgiu neste país do futebol acabar nessa merdinha que estou agora. Se não fosse essa muleta nem conseguiria entrar nesse estádio para ver esta final com Fra-flu.




Perdi tudo, ou quase tudo, menos a vontade de ver se digladiarem naquele gramado verdinho, que enche nossos olhos de esperança, vinte homens querendo fazer gol, ou melhor, 22, porque agora virou moda goleiro bater pênalti.

Tudo aqui me faz relembrar meu passado de glória, e põe glória nisso. Quando eu entrava no gramado com meus companheiros, meu nome era gritado aos berros: FODÃO! FODÃO! FODÃO! FODÃO NELES! E eu ali no gramado cumprimentando alguns companheiros que daqui pra frente iriam bater com vontade como se fossem velhos inimigos. Eu levantava meus braços e cumprimentava os quatro cantos do gramado. Cada um ali se sentia cumprimentado por mim. Todos pensavam que eu estava olhando diretamente para eles, na verdade eu não via ninguém. Eu era um monte de carne e osso recheados de orgulho e com muita vontade de espezinhar aqueles onze que estavam à minha frente.

jogador velhoNa entrada ninguém me reconheceu, ou melhor, quase ninguém, pois um conterrâneo, por incrível que pareça, me reconheceu e falou:
“Fodão, bons tempos, hem?”. Sua voz saiu trêmula e fraca, outras partes do corpo acompanhavam a tremedeira. Saiu com suas muletas tentando se livrar da multidão que ignorava sua fragilidade. Quase fui pisoteado, mas consegui uma cadeira num lugar que dava pra ver todo o estádio confortavelmente. Não poderia morrer sem assistir a um espetáculo daqueles.

O Maracanã todo tremia, como bem disse Nelson Rodrigues depois. E eu ali tremendo de emoção e me vendo na pele daqueles jogadores. Com certeza ninguém entre aqueles milhares pensaria que um dia este velhinho aqui foi melhor do que todos aqueles jogadores. Quem pensaria que eu também já tive músculos fortes e corria desenfreadamente por todo aquele estádio.

Também tenho certeza que nenhum daqueles jogadores, nem um sequer, pensaria que um dia iria envelhecer e ficar fraco como eu. Acho que se pensasse nisso não teriam tanto entusiasmo para correr atrás de uma bola como faziam. Eram homens infantilizados que levavam a sério aquela brincadeira. Como posso condená-los se eu também era assim, um monte de músculos que corria atrás da fama e dinheiro para deixar nos puteiros depois da celebração. Daqui a pouco todos estarão enchendo a cara, fumando e cheirando pó e se achando uns fodões como eu me achava. Só voltarão à normalidade daqui a uma semana quando os treinos recomeçarem e as broncas do técnico se fortalecerem já pensando no próximo campeonato.

É uma busca constante pela vitória, e não é qualquer vitória. Temos de ganhar sempre, senão desmorona tudo. A começar pelo técnico que hoje está falando grosso, amanhã não se sabe em que time do interior estará prometendo o campeonato.

Agora me tornei um chorão e estas lágrimas não são de alegrias como eram no passado. Aliás, a única alegria que me resta ainda é ver o meu time ganhar este campeonato. Não sei se ninguém quer saber de solidariedade, camaradagem ou divisão, a não ser dividir a bolada da grana e levar a melhor. Todos só pensam em se dar bem, mesmo depois de uma falta feia, daquelas de mandar o oponente para o hospital, todos levantam as mãos como sinal de inocência, como se todos fossem cegos e não tivessem visto a má intenção do ato.

Todos sabem por que razão eu era considerado fodão. Uma delas era não ligar pra blá, blá, blá de técnico. Nunca levei a sério aquelas baboseiras de gráficos e outras milongas. Nem ligava. Enquanto fingia que ouvia tava pensando nos meus dribles, como iria deixar no chão o adversário. Uma outa era não gostar de treinos. Isso é pra quem precisa ainda aprender. Modéstia à parte eu já
nasci sabendo. É só perguntar para o pessoal do bairro onde nasci, se é que tem algum vivo. É uma pena, que na época a televisão estava começando. Taí a razão de mostrarem muito pouco do que eu fiz, ou talvez seja indiferença com o passado.

Sabiamente eles só pensam no presente. E como eu já fui presente. Hoje, tudo passou e ninguém percebe com tanta intensidade como eu. É porque você não sabe o que é perder a glória, se tornar um ser imperceptível na multidão, se tornar um Zé-ninguém como quase todos aqui que estão aplaudindo esses fodinhas de hoje. Esses garotos propagandas de hoje com seus cortes-de-cabelo estranhos para chamar à atenção cada vez mais, se esquecendo que temos de pensar somente em levar a pelota para o gol. E quando isso acontece, ninguém quer saber se você é baixinho, careca, gordinho ou de onde veio. No futebol se aceita tudo, menos a derrota. E disso eu posso falar. Foram poucas as vezes que eu perdi. Talvez por isso pensava, ou melhor, nunca pensava que um dia eu seria fraco, eu temeria alguma coisa, ou alguém na minha frente. A vitória nos imprime a ilusão da invencibilidade.

Como naquele dia fatídico que perdemos a final para o Uruguai. Este estádio parecia um enorme cemitério, cheio de mortos-vivos chorando em silêncio e cabisbaixos. Aqui também é um lugar de grandes tristezas enquanto outros sadicamente riem, gritam, se abraçam, se beijam como meninos que não querem sair da infância, e isso lhes dá muita felicidade.

Espero que hoje eu leve pra casa um pouco dessa coisa fugaz, mas que muitos buscam através da bola, outros em formas menos esféricas. Hoje a procuro através de coisas inimagináveis para muitos. É ver um pássaro voando sem destino, é um outro que canta pra outro repetir, é o cantar intermitente das cigarras e até o simples piar dos pardais me comovem, como outras coisas que no meu tempo de Fodão, passavam impercebíveis. Com a perda da força dos músculos, surgem outras formas de encarar a vida. Quem nos ver
pensa que sempre fomos assim, pesados, lentos e incapazes de chutar uma bolinha de tênis. Felizmente meu time ganhou, levarei comigo o pipocar dos foguetes, os gritos de campeão, o brilho intenso no olhar dos torcedores, os abraços intermináveis e o som de campeão! Que às vezes se confunde com fodão e que ninguém se lembra, é foda!

  • Conto retirado do livro “A Lucidez dos Insanos” de Assis Coelho.
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